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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sobre Jandira e um amor mateiro

... Era janeiro de 2007 quando ‘Jandira’ foi dada como desaparecida por seus pares e amigos, forças naturais e demais interessados, no entanto, ela deixara marcas que nunca desapareceram, pois incorporara o próprio mito, em metafísica. Uma narrativa que se entrelaça com a história de Jorge, sonhador, humano, guerreiro, mais por admiração que por estética e predicado.

‘Jandira’ aparecera na comunidade Arandu quase por acidente. Bióloga recém-formada, ela acompanhava uma comitiva de rondonistas que expedicionvam pela região na tentativa de criptografar a oralidade do povo e suas relações com os biomas locais. Jorge era veterano do curso de línguas e trabalhava numa linha de pesquisa que buscava na relação acima citada a essência da etnia, conhecida pela valorização da tradição oral do seu povo, na criação de mitos, que carregava ao longo dos anos crenças e lendas fortemente enraizadas na região. Sob o olhar da mata, dos espíritos e das forças ocultas que se embrenham na alma, um amor se fez raiz; como a das árvores bicentenárias, que cercavam os solos do lugar, o amor cercou os acadêmicos corações dos dois.

O povo Arandu durante muitos anos viveu isolado das questões ditas sociais para este moderno mundo. Seus líderes ponderavam que para a preservação da comunidade e, sobretudo, para manter as características de seu povo intactas das maleficiências do homem, era de suma importância manter distância das formas de educação e convívio “civilizados”. Os Arandu eram um povo que, diferentemente das outras etnias do lugar, colecionavam e reverenciavam uma série de espíritos e mitos que impregnavam sua cultura de magia e interrogações. Alguns nativos incorporavam estes guerreiros e guerreiras do passado, e assim, remontavam a tradição e o conhecimento aos jovens. Por meio de rituais, revelações as mais diversas eram absorvidas, numa espécie de transe impulsionada pela ‘ayahuasca’, chá típico de alguns povos indígenas do lugar.

As histórias de Marina, a bióloga, e a de Jorge, o linguista, se cruzam neste campo de relações acadêmicas misturadas ao sincretismo e tradição indígena, nos rituais florestais que trazem a mata para dentro da alma. Das paixões brejeiras que ruminam mantras e fotossínteses amorosas.

Nestas entranhas eles se conheceram durante uma tarefa de memorialização do povo e de seus antepassados, processo que somente com muito custo e negociação foi aceito junto aos líderes da tribo. Uma vez de olhares cruzados os dois se apaixonaram, sem mesmo uma palavra dita, sem sequer negociação amorosa qualquer ou processo de conquista, ou alguma ponte de comunicação que não seja visual. A intensidade dos olhares foi tamanha, que para que essa paixão desaguasse mata e coração adentro, não necessitava de nenhuma interação estética, apenas o combustível que alimenta a raiz, e esta, fincou-se no coração dos dois, assim como os Jequitibás se fincam chão adentro.

Mimetizados pelo romance, alheios à tarefa incumbida, os dois ficaram estatelados a se namorarem. Ficaram naquele lugar, ali, se sentindo sem se tocaram, numa paixão momentânea, eterna, duradoura, erótica. Abordados pelo coordenador, pois já demonstravam certo impasse nos trejeitos, os dois se recompuseram e tentaram refazer suas atividades. O chefe da expedição ficara receoso de que os caciques pudessem zangar-se com o amor desconhecido e desabrochado, e cancelar assim, as atividades. Chamou a atenção dos dois. Ainda em êxtase, ficaram sem entender o que lhes acontecia.

Ambos sentiram uma estranheza fora do comum: como havia de sentir tamanha densidade de sentimentos sem sequer se tocarem. Como poderia sentir homérico prazer sem, de fato, presenciá-los.
Recolhidos ao fim da atividade tentaram se pronunciar entre a caminhada de volta do trabalho, mas as tentativas foram inúteis, estavam cercados não somente pelas bordas da mata densa, mas também por energias que não eram suficientemente táteis para que ambos compreendessem.

Ao chegarem ao campus conseguiram trocar algumas palavras, fúteis, nada mais que isso. Combinaram de tomar um sorvete ou alguma bebida qualquer, isso era o de menos para uma situação tão forte como a que viviam.
Eis que as forças da natureza são maiores e, peças do destino à parte, fez com que este momento não se concretizasse, pelo menos neste plano mundano.

Durante o trabalho da semana seguinte os rondonistas foram convidados a presenciar o ritual ‘xamânico’ típico dos Arandu, em que os aptos incorporavam trejeitos, formas e peculiaridades de seus antepassados, e foi aí que ‘Jandira’ aparecera na vida dos dois.
Durante o consumo do chá Marina sentiu uma vibração muito forte em seu corpo, e este passou a não corresponder seus estímulos. O cacique Arandu orientou que ninguém a tocasse, pois caso ela estivesse incorporando o espírito da índia ‘Jandira’, mateira e caçadora que protegia a tribo em noites de relâmpagos, a moça poderia nunca mais desencarnar daquela força. E foi o que aconteceu.

Jorge afoito e imaturo para as questões espirituais tentou persuadir Marina, ou ‘Jandira’, a se recompor, quando levou uma forte pancada na cabeça e caiu ao chão. Todos ficaram assustadíssimos com tamanha força que a moça acertara seu recém-amado. Jorge conseguiu apenas segurar o embornal que Marina levava a tira colo. ‘Jandira’ saiu correndo mata adentro.
O cacique explicou que ‘Jandira’ só aparece raramente para pessoas muito sensitivas e que dificilmente ‘devolvia’ quem a envolvia. O fato já acontecera anteriormente.

Marina nunca mais foi vista.
De lágrimas olhos afora Jorge ficou com coração partido vida adentro. Na bolsa de Marina um bilhete que, certamente, era para ele, que dizia:

“(...) não tenho um sabor de sorvete predileto”.

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