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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sobre os endereços da alma (ou sobre destinatários ocultos)

Ao que nos indica, nosso personagem nesta fatídica novela existencial não era figura das mais sorridentes, não mesmo. Ao menos a partir de quando sua alma fora marcada por destinatários ocultos.
Sujeito macambúzio por natureza, era homem de poucas palavras e trejeitos singulares, que carregaria por toda sua existência. Algumas pessoas diziam-no inquieto e sempre incomodado, talvez com ele mesmo, talvez com o macrocosmo determinando seu microcosmo. Certo era que algo em determinado momento da sua pacata vida passou a incomodá-lo.
Nascido numa pequenina cidade, de ares interioranos e poucas novidades diárias, José da Anunciação foi criança tranquila, contavam alguns vizinhos. Embora criado pela avó, desprovido do calor de pai e mãe que desguarneceram-no cedo, parecia não carregar uma problemática existencial por isso. Foi menino solto para as peripécias que a idade exige, e por várias vezes, aparentemente feliz.
Uma vez até, mesmo com toda a timidez do mundo escondida nos bolsos, durante a adolescência convidou Claudinha, vizinha rechonchuda que despertava seus maiores desejos, para ser seu par nas festividades juninas. Aceitar a “Monalisa” não aceitou. Mas José ficou contente por pelo menos ter convidado, quebrara uma barreira significativa.
Já adulto, embora com bigodes mornos de uma recém chegada à "macheza testosterônica", debruçou-se por vários trabalhos solícito ao cumprimento da máxima marxiana: a realização do ser pelo trabalho. Insatisfeito com todas experiências de até então, conseguira aprovação numa seleção para a ocupação de carteiro logo aos 20 anos de idade, tarefa que lhe empolgara por algum tempo. Pela primeira vez faria algo em que se identificasse.
A cidade de nosso personagem, "ensaio de São Gabriel Arcanjo", era muito pequena e não tivera entrega dos correios durante muito tempo. As mais diversas postagens eram remetidas até Gangorra, distrito localizado a poucas léguas do lugar. José foi o primeiro carteiro da cidade e, após algum tempo, foi apelidado 'Zénuncio'.
Isso não o incomodava muito. Zénuncio era daqueles sujeitos que desenvolvera certo desprezo pela vida coletiva, achava que sempre quando em grupos as pessoas ou falavam mal de alguém ou tramavam contra algum infeliz.
Zé saia de sua casa no Buraco da Promessa e se metia às suas peregrinações pela cidade, dignas de registro. Com o passar do tempo seu labor passou a ser marcado por uma mística intrigante.
Todas as segundas quintas do mês, por exemplo, era dia de levar o contra-cheque do seu Roque, vigilante aposentado da escola onde estudara. Para chegar até lá Zé tinha que passar pelo campo do brejo. E ali algo despertava sua atenção!
Toda vez que por lá empreitava um tiziu cumpria sua predestinação natural; lá estava ele empoleirado nos mourões a pular rapidamente e retornar ao seu galho. Este ritual marcava seu território para que outro pássaro não se acabrunhasse e servia para que o animal se demonstrasse às fêmeas.
Todos os dias em que seu Roque era o destinatário o tiziu presenciava Zénuncio desaguar seu existir. Imponente e veloz, o animal demonstrava-se com rigor para as fêmeas de seu reino. Um pulo rápido, veloz e certeiro: voltava para o mesmo lugar. O dia inteiro assim. Sol. Chuva. O que fosse.
Nestes dias o animal era confidente do carteiro e ouvia suas queixas, desejos, maledicências, ali o carteiro era o corifeu. Pulando pra não correr o risco de um concorrente sujar seu território, o tiziu seguia na oitiva com o carteiro.
Zé tinha naquele ritual um exemplo de posição existencial, uma marca, ou um endereço da alma, para conjugar com o título do nosso enredo. Por vários destes momentos Zénuncio se perguntava qual seria o endereço da sua alma, da sua pobre alma. Se perguntava como podia saber tantos endereços, tantos trejeitos, minúcias e etc. Mas de outras localidades, não da localização da sua alma.
Desconfiado, o carteiro tinha certo receio de que o dia em que o ritual não acontecesse algo estaria fora do lugar no caos. No mais perfeito equilíbrio algo estaria desequilibrado. Talvez neste dia o caminho ficasse desacertado e confuso, e talvez ainda, não pudesse encontrá-lo. Num breve futuro descobriria que não estaria errado.
E assim, tempo passando, o solitário Zénuncio entregava todas terças e quintas as correspondências da cidade inteira. Em especial, as segundas quintas do mês também confabulava com o tiziu no campo do brejo, ali edificara sua espécie de caserna.
Via as pessoas se alegrando com notícias de parentes distantes, pessoas tristes com notícias do mesmo tipo, lágrimas, sorrisos, alegrias e etc. Zénuncio era meio que cúmplice de várias situações que estavam porvir. Lógico que não na sua vida, não era tão pretenso, mas na vida de terceiros.
Certa feita bateram na sua casa às 11 da noite! Era dona Eliotéria disposta a certificar-se que Zénuncio havia entregado todas as correspondências e não sobrara nenhuma em sua pasta escudeira fiel.
Seu filho havia prometido mandar uma réplica de Nossa Senhora do Livramento para ela. Zénuncio atendeu, meio que a contragosto e sonolento:
- Ô meu fio, perdoa essa pobre, sabe... mas é que meu fio, lá de Sant'Antão, sabe, o Neco, é, pois é... ele ficô de mandá pra ieu uma nos'senhora do livramento, será assim, cê mi descurpa perguntá Zé, mas será que ocê num se esqueceu de me levá não? Zénuncio levantou bravo mas não destratou a pobre, imaginou sua avó no lugar, encolheu sua raiva nas mãos friorentas e explicou à velha que não havia chegado nada para ela, e que, como de costume, entregava todos os mandados no mesmo dia, sem deixar nada pra trás.
Tranquilizou-a falando que certamente na próxima entrega estaria lá, a Santa, e que seria a primeira felizarda do dia a receber a correspondência. Satisfeita, ela pôde ir e ele desfrutar da tranquilidade divina dos sonhos.
Com o passar dos anos nosso mensageiro foi ficando mais inquieto ainda. Já não podia entender como entregava tantas notícias à tantas pessoas e nunca recebia uma sequer. Nem mesmo uma pequena pista de seu questionamento, nenhum rastro do caminho que procurava. Passava pela sua cabeça que ninguém poderia ser tão esquecido quanto ele. E logo ele, que se lembrava de todos os destinatários. Lembrava-se de todos, todas as terças e quintas, e ninguém se lembrava dele.
Uma vez ao mês entregava na casa de um hondurenho, morador da cidade há anos, uma caixa retangular e relativamente pesada, e isso despertava no carteiro uma curiosidade tal que chegava a nutrir admiração pelo cidadão.
Toda vez que chegava a casa de Poncyo Arcádia com a caixa ele lhe contava “estórias” de como veio parar nos trópicos, devido à perseguição estadunidense. Segundo o pobre, tinha participado da revolução sandinista na Nicarágua e, deflagrada a contra-revolução, sido perseguido por “novos inimigos”. Contava com seu sotaque carregado a chegada à Manágua no 19 de julho de 1979, com riqueza de detalhes tal que faziam o carteiro fotografar toda a “estória”.
O estranho é que por mais que as vezes parecessem lorotas do centro-americano, ele sempre trajava roupas militares e uma vez ao mês recebia a caixa. Isso intrigava Zénuncio e também despertava sua imaginação. Como seria uma revolução e quem seriam os sandinistas? E os inimigos? Seriam munições nas caixas? Quando ficou sabendo que o cidadão foi diagnosticado louco e internado numa colônia a sua revelia, Zé ficou um pouco frustrado, queria muito que fosse verdade, acreditava que fosse verdade.
Com o tempo, nem mesmo o “debate” com o tiziu pôde amenizar a problemática existencial que caíra, ou que armara para si mesmo. Se não havia destinatário poderia haver remetente? O porquê era sua indagação diária.
Por muitas vezes passou pela sua cabeça que alguém que não recebia notícias de nada, nem de ninguém, assim como ele, só poderia estar morto. Zénuncio cansara-se de esperar. Seus já grisalhos cabelos não podiam mais esperar pelas tão sonhadas notícias de si mesmo!
Certo dia Zénuncio desenrolava mais um dia de trabalho, mais uma segunda quinta do mês, onde com certeza um indivíduo de mais uma geração da família dos “tizis confidentes” fosse esperá-lo. Mas algo estava errado no caos. Naquele dia o tiziu não pulou marcando seu território, naquele dia alguma rarefação no ar denunciava que o dia não seria tão banal assim. Aparentando estar confuso o pássaro sequer se mexia. E atônito o tiziu demonstrava nos olhos uma expressão de loucura, de que algo calamitoso passava-se. Zé foi embora intrigado, recordando como eram joviais os tizis em seu pulo, em remeter-se ao seu endereço.
Ao retornar à central de distribuição de correspondências, abatido pelo sinal do pássaro, seu colega Geraldo Tarantino, carteiro demasiado obeso que não saía para entregas devido aos seus problemas com as biritas, disse que algo havia para ele na expedição: era uma correspondência.
Todo um filme apresentara-se à cabeça do pobre carteiro. Seria uma carta de alguém que se interessara por ele? Será que podia ser Claudinha, agora uma senhora mais rechonchuda ainda que tinha os mais belos “mocotós” nas pernas da cidade? Ou será que podeira ser algum programa de televisão que o descobrira por indicação de um “cliente” satisfeito. Seriam pistas que remetiam às suas indagações? Mil filmes se passaram na cabeça de José da Anunciação, fiel cumpridor da sina de São Gabriel Arcanjo.
Depressa, mais que depressa, ele se dirigiu ofegante para a expedição a fim de receber a sua correspondência. Sua correspondência! Isso mesmo, era sua, e com certeza algo o esperava.
Mas o doutor destino, cruel definidor de outras conspirações, fez com que “Sua Correspondência”, aquela mesma, fosse uma carta do instituto de previdência notificando que os seus soldos estavam bloqueados, pois notificaram a morte de um tal José da Anunciação. Se não fosse cruel seria cômico.
Zénuncio passou a se indagar se de fato não estava morto, se de fato existiu. Não se empenhou em provar que estava vivo e passou viver como um andarilho pela cidade. Sem a confidência do tiziu, mas com a certeza da dúvida de se um dia vivera de verdade.
Certo é que outras entregas ele não pôde fazer, pois não havia à quem remeter. Fato é que José da Anunciação foi invadido por destinatários ocultos e o endereço de sua alma passou a ser vago, incerto, próprio do destino de um andarilho.

Por Leandro Galdino

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